O facto de o preço de mercado das licenças ser elevado é a melhor prova de como a limitação da quantidade é artificial, desnecessária e injusta. Mostra que os seus detentores beneficiam de uma “renda”.
É intelectualmente confortável estabelecer um paralelo entre a “guerra táxis vs. Uber” e os episódios históricos de “destruição criativa”, em que o progresso económico trazido por novas tecnologias tem impactos heterogéneos, criando losers e winners. Mesmo que a sociedade saia mais próspera e até menos desigual, os losers naturalmente resistem à mudança.
O debate e a cobertura deste problema têm-no enquadrado desta forma, quando não é o que está verdadeiramente em causa. Defendo antes que deve ser visto como um conflito distributivo clássico.
Estas plataformas (no caso português, sendo uma questão diferente em países onde existem serviços como o UberPOP) não vieram “mudar por completo a realidade”. Simplesmente, ao subverter o sistema vigente, puseram em evidência uma histórica injustiça latente: a limitação administrativa do número de táxis em circulação, que cria uma renda de monopólio para cada proprietário de uma ou mais licenças.
A solução para tudo isto é por isso fácil de entender, mas difícil de “encaixar”: passa por acabar com a limitação às licenças de táxi nas áreas metropolitanas.
Note-se que é ou cínico ou erróneo dizer-se que não há uma situação (local) de “injustiça”, no sentido de desigualdade, nas regras que são exigidas aos “taxistas” e a estas plataformas para operar um serviço que é, no essencial, o mesmo. Simplificando, há quem, defendendo o lado Uber da vida, explica que não é nada injusto porque, melhor ou pior, a Uber não é a mesma coisa que um táxi, é algo novo, fresco e diferente. Mas na realidade o serviço de transporte que presta é essencialmente o mesmo. Apesar de algumas características de serviço público do táxi, não há razão para que não pudessem ser igualmente prestadas por veículos ligados a essas plataformas. São argumentos problemáticos mas, penso, na direção certa.
Mais grave é defender o contrário: que é preciso “proteger” o setor do táxi da “concorrência desleal”. Ou não se entende que o problema nasce das regras e não dessa “injustiça”, ou então está-se a defender o que é na realidade uma corporação rentista. Nestas linhas tentarei explicar porquê.
A regulação destes serviços pode dividir-se em três tipos: segurança (qualidade), tarifa (preço), entrada (quantidade).
No primeiro caso, é pacífico que há um papel necessário para a regulação, o de garantir níveis mínimos de segurança (o qual até pode nem ser desempenhado diretamente pelo Estado, mas em ligação com as próprias plataformas).
É necessário algum tipo de qualificação mínima que garanta a habilitação para o transporte de passageiros, um seguro de responsabilidade civil e outras regras básicas. Ainda assim, as plataformas digitais (aqui sim, uma grande diferença) permitem uma muito maior difusão da informação que reduz a necessidade deste tipo de regulação, permitindo também que haja mais concorrência ao nível da qualidade.
O caso a favor da regulação dos preços nos táxis já é menos robusto, mas existe. Tipicamente faz-se, na prática e na literatura sobre o tema, uma distinção entre os mercados de “street hail”, os táxis que circulam pelas ruas e que um passageiro pode solicitar em qualquer sítio, a qualquer altura de forma aleatória, e “phone book”, em que se ‘encomenda’ o táxi através do telefone.
Considerava-se que no primeiro caso havia um problema significativo de informação assimétrica, visto que o cliente só tem em determinado momento acesso a informação sobre o preço daquele táxi em particular que, por acaso, passava por ele num determinado momento, justificando inteiramente a regulação dos preços. Já no segundo caso, uma vez que seria fácil ao cliente ligar para várias companhias de táxi, esse raciocínio aplicar-se-ia menos. Seja como for, na realidade atual a importância destas questões vai diminuindo, devido às várias evoluções tecnológicas (algumas pré-Uber) que reduzem a importância do “street hail”.
Na situação atual, é obviamente necessário regular os preços, quando estamos a falar de um monopólio. O problema é que este é desnecessário, mas criado artificialmente pelo terceiro tipo de regulação: da quantidade via entrada no mercado.
Na maioria das cidades das economias avançadas (em Nova Iorque, p. ex., existem os “medallions”), existe uma licença associada a cada veículo, emitida normalmente pelas autoridades municipais – o que contribui para a dificuldade de perceção.
O número destas licenças é limitado. São emitidas poucas licenças novas ao longo do tempo, mas as já existentes podem ser transacionadas. Ou seja, o número de táxis a circular numa cidade é controlado. Quem quiser entrar no mercado só o pode fazer facilmente mediante a aquisição de uma das licenças já existentes, que assumem normalmente preços de revenda muito substanciais. Uma reportagem da Visão de março deste ano descrevia com grande vivacidade este “mundo paralelo” no caso de Lisboa, onde a última emissão de novas licenças se deu em 2010, e o preço de aquisição de uma existente pode ultrapassar os 100 mil euros.
Em qualquer caso, a limitação do número de táxis em circulação significa uma restrição da oferta de serviços de táxi, artificial e injustificada. Aqui está o cerne do problema, pelo menos ao nível da compreensão. Mesmo a reportagem que referimos acima descreve acriticamente como, em 2010, aqueles concursos deram origem a grande polémica pois vieram «sobrecarregar ainda mais o mercado».
O senso comum parece, aqui, contrário a uma análise sólida: não há qualquer razão atendível para se pensar que há um limite máximo para o número de táxis em circulação numa qualquer cidade, e muito menos para que o decisor entenda aplicá-lo.
Nenhum dos argumentos normalmente aduzidos colhe. Os principais são: eventuais externalidades negativas como congestão do tráfego ou poluição (já controladas, pelo menos parcialmente, por outras políticas mais adequadas); as características de serviço público dos táxis (que poderão convocar um limite “mínimo”, a necessitar de algum tipo de subsídio público, mas só aplicável em zonas rurais e não urbanas); informação assimétrica (sem sentido hoje em dia); economias de escala; “concorrência excessiva”; entre outros.
Não cabe nestas linhas examinar cada um em detalhe, o que se reserva para uma publicação futura, a publicar em breve pelo IPP. Mas o mais importante argumento em favor da manutenção desta regulação injusta – além de razões de economia política, relacionadas com as atividades de rent-seeking do setor – é também o mais difícil de rebater: é que “sempre foi assim”.
Seja como for, o facto de o preço de mercado destas licenças ser muito significativo é a melhor prova de como a limitação da quantidade é artificial, desnecessária e injusta. Mostra que os detentores de licenças de táxi beneficiam efetivamente de uma “renda”. É fácil de entender que esses valores serão correspondentes à soma do valor esperado dessas rendas futuras, i.e. a diferença entre os lucros da exploração da licença, e a rentabilidade “normal” de investimentos alternativos.
Os preços excessivos que permitem estas rendas implicam, por um lado, que o serviço de táxi seja menos utilizado do que seria com preços mais reduzidos e, por outro lado, que os consumidores estão a pagar mais do que deveriam, retirando menos valor da viagem. Além disso, isto também contribui para níveis de qualidade do serviço subótimos.
Tudo somado, temos uma perda líquida de bem-estar para a sociedade, agravada pelo facto de se saber que para certas camadas da população, nomeadamente os mais idosos, este tipo de serviço é importante, por exemplo, para o seu acesso a consultas e tratamentos médicos, dificilmente podendo ser considerado supérfluo ou “de luxo”.
Isto levaria a uma perda imediata de riqueza para os proprietários das licenças, que embora justa no cômputo geral, criaria situações localmente injustas e provavelmente inaceitáveis em termos sociais e políticos.
Para o possibilitar, teria de ser adotada uma solução como a encontrada na liberalização do mercado de táxis em Dublin em 2000, em que foi criado um fundo para compensar, pelo menos parcialmente, os proprietários das licenças. Mas os maus argumentos económicos e políticos têm mais força do que parece: em Dublin, depois da recessão de 2008-9, caiu-se na tentação de fazer regressar a limitação das licenças, com maus resultados para os consumidores e para a economia.
Por isso, e tendo em conta a demonstração de força a que assistimos hoje, é difícil estar otimista. Mas certo é que se o Governo pudesse ter a coragem de resolver esta injustiça histórica, ficaria na vanguarda internacional nesta área. Claro que, para tal, seria preciso ter a coragem de, primeiro, reconhecer que, ao defender o setor da maneira que alguns parlamentares têm feito, se está a defender as “rendas” contra as quais tanto se apregoa.
Este artigo foi originalmente publicado no jornal online Observador.
(a opinião aqui expressa vincula somente o autor)
Luís Teles Morais
Research Fellow