Análise da execução orçamental de dezembro 2019

Quatro anos passados, quatro orçamentos cumpridos. Tal só pode ser motivo de satisfação  para a dupla António Costa & Mário Centeno, que têm, no entanto, agora uma tarefa mais exigente relativamente aos Orçamentos desta nova legislatura – porque muitos dos fatores que permitiram cumprir 4/4 orçamentos estão-se a esgotar.

O ano de 2019 encerrou com um défice de 599 milhões de euros, em contabilidade pública, refletindo uma melhoria de 1.643 milhões. Se já temos os números em contabilidade pública, porque não se pode já avançar com o valor do saldo orçamental em contabilidade nacional? Porque tendencialmente regista-se uma diferença significativa entre os saldos na ótica da contabilidade pública e das contas nacionais e, mais importante, no ajustamento entre óticas que se prevê para o mesmo ano nos diferentes Orçamentos do Estado.

Repare-se na tabela seguinte que, por exemplo para 2019, o ajustamento entre óticas era de 1.218 milhões de euros segundo o que estava inscrito no OE 2019. Mas, segundo informação do OE 2020, o ajustamento já era de apenas 933 milhões – ou seja, 285 milhões de euros que não são justificados e que podem fazer toda a diferença entre anunciar um défice ou um excedente orçamental em contabilidade nacional (a que interessa a Bruxelas). Os ajustamentos refletem muitas vezes a consequência de ações que têm implicações em mais do que um exercício, podendo estar-se a falar de operações com impacto no ano do Orçamento, pelo que seria importante explicações adicionais.

Ainda assim, uma vez que o Relatório do OE 2020 foi apresentado há menos de dois meses, tomando como certa a informação que lá consta (ou seja, o ajustamento de 933 milhões para 2019), isso significa um excedente orçamental de 334 milhões de euros, o que se traduz num excedente de 0,16% do PIB  em contabilidade nacional – o que vai ao encontro das estimativas do Institute of Public Policy anunciadas já desde a execução orçamental de agosto.

Portugal vai, assim, registar um excedente orçamental já em 2019. Mas como é que se passa então da uma perspetiva de défice (ainda que ligeiro) para um (também ligeiro) saldo orçamental positivo? A quem se atribui o mérito? Ao Governo e às diferentes políticas que tem vindo a implementar desde o início da primeira legislatura, ou a fatores externos como o comportamento atipicamente favorável da economia portuguesa e, especialmente, europeia?

Importa analisar quais as rubricas que tiveram maiores desvios. O gráfico infra apresenta os maiores impulsionadores da consolidação orçamental: investimento público, impostos e contribuições sociais, tudo com um desvio que contribui para a melhoria das contas públicas. Com impacto negativo nas contas destaca-se maioritariamente as despesas com pessoal.

Analisando o gráfico dos principais desvios registados com impacto positivo, algum deriva diretamente das políticas implementadas nos últimos anos pelo Governo? Não. Apenas as despesas com pessoal na Administração Central (desvio de 334 milhões de euros – que implica um impacto negativo no saldo orçamental e que, por isso, não contribuem para a consolidação orçamental), que derivam da política de valorização dos salários da função pública e do descongelamento das carreiras.

O considerável desvio no investimento público (1.134 milhões) advém precisamente da ausência de políticas significativas de investimento por parte do Executivo. E o desvio registado na receita fiscal e contribuições sociais (com sinal negativo, mas que impactam positivamente o saldo orçamental, por serem receitas e pelo facto de o valor executado ter sido superior ao valor orçamentado) advêm essencialmente do bom comportamento da economia e mercado de trabalho (menor desemprego, níveis de emprego mais elevados, crescimento da atividade económica, aumento dos salários, entre outros).

Tendo as contas de 2019 fechado com um défice de 599 milhões de euros (em contabilidade pública), facilmente se observa que, caso não se tivesse registado apenas um dos desvios positivos anteriormente referidos (menos investimento do que o esperado, mais impostos e mais contribuições sociais), o cenário final teria sido muito diferente – ter-se-ia registado um défice orçamental em 2019.

A análise destes desvios apresenta uma importância que não devia ser descurada. Os desvios registados no final do ano são, geralmente, analisados e discutidos com maior detalhe apenas na altura da divulgação da Conta Geral do Estado (que chega apenas 6 meses após o término do ano, quando a discussão já está apagada). Esta análise é importante não só para analisar em retrospetiva o ano orçamental a que respeita, mas também para servir de base à discussão do Orçamento do Estado do ano seguinte. Ora veja-se: para o Orçamento do Estado de 2020 a maior “discussão” prende-se com a revisão/descida do IVA da eletricidade. Segundo o Governo, tal implica um aumento de despesa de 800 milhões de euros que não pode ser acomodado no presente esboço do Orçamento. Mas, se considerarmos que cerca de mil milhões dos 3.918 milhões de euros que estão previstos para investimento público da Administração Central não se vão concretizar (à semelhança do ocorrido em 2019 e nos dois últimos anos, pelo menos), então já era possível acomodar uma medida de descida do IVA da eletricidade.

Por fim, gostaríamos de destacar a situação da dívida não financeira dos Hospitais – à semelhança do Ministério, que destacou no título do seu press release que 2019 encerra “com pagamentos em atraso no SNS em mínimos históricos”. A informação não é falsa: em dezembro de 2019 registaram-se 256 milhões de euros de pagamentos em atraso dos Hospitais EPE – um mínimo histórico, que representa uma diminuição homóloga de 228 milhões de euros.

No entanto, a falta de enquadramento e justificação destes valores peca muito pela sua falta de transparência. Este mínimo histórico não reflete, de todo, o comportamento da dívida não financeira dos Hospitais EPE no decorrer do ano. Esta dívida tem sido tendencialmente crescente, apenas colmatada com regularizações extraordinárias. Pelo gráfico infra nota-se precisamente esta tendência: a dívida apresenta um comportamento de crescimento, que só é travado com injeções de capital que ocorrem sempre convenientemente em novembro, sendo assim possível anunciar “mínimos históricos” no final do ano. Esta é uma situação que já se verifica desde 2016 e que não contribuiu para a resolução a longo prazo deste problema.

Para uma leitura mais detalhada sobre esta problemática e para melhor perceber a diferença entre stock versus fluxo da dívida, consultar o observatório mensal da dívida dos hospitais EPE, disponível no blog Momentos Económicos e não só.

P.S: no final do ano orçamental, é importante não só uma análise dos desvios que ocorreram, mas também do nível de cativações que se registou. No entanto, tal não é possível, pois essa informação não consta do boletim da execução orçamental de dezembro divulgado pela DGO (apesar de haver essa obrigação de reporte trimestral).