O ano de 2019 não podia ter corrido melhor para a segunda legislatura de António Costa: segundo o INE, é oficial que não só a meta do défice para 2019 foi alcançada, como foi superada com sucesso, com o registo de um saldo orçamental positivo. A capacidade de financiamento das Administrações Públicas havia atingido cerca de 404 milhões de euros, o que corresponde a 0,2% do PIB, em contabilidade nacional.
Estava tudo preparado para 2020 ser outro sucesso. Segundo o OE2020, o objetivo era alcançar um saldo orçamental de 0,2%, o que não se afigurava ser uma tarefa particularmente desafiante, dado esse saldo já ter sido alcançado em 2019 e dadas as perspetivas de crescimento da economia. No entanto, desde março que já todos temos a certeza de que tal já não se vai concretizar. O ano de 2019 ficará para a história – pelo menos no curto-prazo – como o primeiro e único ano do período da democracia portuguesa em que Portugal alcançou um excedente orçamental.
Apesar do sucesso de 2019 ter proporcionado um ponto de partida mais confortável para 2020, nenhuma melhoria das finanças públicas portuguesas conseguiria contrabalançar o impacto disruptivo que se espera registar este ano devido à situação de pandemia de covid-19. Este ano a dupla António Costa & Mário Centeno têm o maior desafio possível em termos orçamentais. Um desafio que é partilhado por todas as economias a nível mundial. Agora, o objetivo para 2020 passou a ser evitar um défice de dois dígitos.
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Até ao fim do primeiro trimestre registou-se um saldo orçamental positivo de 81 milhões, em contabilidade pública. Um excedente que não deverá durar muito mais. O saldo registado até fevereiro havia sido de 1.274 milhões de euros – o valor mais alto de sempre até fevereiro. Março já reflete, assim, alguns dos efeitos da pandemia na economia portuguesa e os esforços para os mitigar. A receita deixou de crescer em linha com o crescimento da despesa. A primeira começou-se a retrair (com um menor crescimento, de 1,3%), e a segundo começou a acelerar (com um crescimento de 5,3%).
Tendo em conta que o estado de emergência entrou em vigor apenas no dia 18 de março, os primeiros meses do primeiro trimestre de 2020 ainda decorreram dentro da “normalidade”. Os fatores de sucesso da execução orçamental dos últimos anos continuavam a verificar-se: crescimento das contribuições sociais, crescimento na arrecadação de impostos, delicado investimento público.
Relativamente aos impostos, destaca-se a evolução da arrecadação do IVA. Este foi a “estrela” da receita fiscal em 2019, tendo sido o imposto que apresentou um maior desvio positivo face ao orçamentado (mais de 300 milhões “extra” coletados). Tudo indicava que este ano iriamos estar perante um comportamento idêntico, isto porque os meses de janeiro e fevereiro apresentaram um crescimento médio de 3,6%, que se deveriam manter dadas as perspetivas de crescimento da economia. Porém, em março já se fez sentir o impacto da pandemia nesta área, tendo a arrecadação do IVA apresentado um comportamento a que já não estávamos habituados, com um modesto crescimento de 0,4%. Este imposto será certamente um dos mais afetados.
As contribuições sociais (tanto a nível da Segurança Social, como da CGA) apresentaram um crescimento consistente nos três primeiros meses do ano, com uma variação homóloga média de 9%, assente numa panóplia de fatores, como a manutenção de um mercado de trabalho mais forte com menor desemprego, níveis de emprego mais elevados e aumento médio dos salários. Contudo, na próxima divulgação da execução orçamental já deverá ser inequivocamente visível uma redução substancial das contribuições sociais. Não só pelas medidas de carácter extraordinário que permitem a alguns trabalhadores adiarem parte das suas obrigações contributivas, mas também pela entrada de quase 100 mil pedidos de layoff, que podem abranger potencialmente 1,2 milhões de trabalhadores (segundo os últimos indicadores disponibilizados pelo Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do Trabalho).
No que respeita ao terceiro impulsionador do saldo orçamental do passado, o investimento público, no fim do primeiro trimestre de 2020 havia-se registado um aumento homólogo de 205 milhões de euros (referentes ao investimento da Administração Central). Os últimos anos foram pautados por uma ausência de políticas significativas de investimento por parte do Governo em vigor, que prometia corrigir essa questão este ano. Dada a situação atual, é expectável que a ausência de políticas de investimento se mantenha, no que a investimentos estruturais diz respeito. No entanto, as taxas de crescimento mensais que se irão registar não devem em muito diferir das registadas no ano passado, pois existe investimento de manutenção que não pode deixar de ser realizado, e ainda investimento extraordinário de aquisição de material médico para o combate à pandemia.
O setor da saúde, já anteriormente anunciado como a prioridade desta legislatura para este ano, vai ser inequivocamente o que mais alterações e pressão orçamental irá sofrer. As perspetivas já não eram favoráveis: suborçamentação do SNS, aumento expressivo das despesas com pessoal (dada a atualização salarial e a conclusão do processo de descongelamento das carreiras), reforço das contratações de profissionais para o SNS. Todos estes efeitos devem ir sofrer um agravamento.
Positivamente, em março tínhamos assistido ao valor mais baixo de sempre neste mês da dívida não financeira dos Hospitais (pagamentos em atraso), que ascenderam a 165 milhões de euros. Isto após a divida ter demonstrado novamente uma tendência crescente em janeiro e fevereiro, depois da injeção “extraordinária” de capital ocorrida em dezembro passado. Futuras acumulações de dívida não poderão ser integralmente justificadas com necessidades de resposta à pandemia, nem interrompidas somente através de injeções extraordinárias de capital. É agora mais importante do que nunca criar uma estratégia integrada de resolução a longo prazo desta dívida e dos pagamentos em atraso, bem como remediar a suborçamentação do SNS.
Todas as rubricas de finanças públicas irão apresentar um comportamento diferente do apresentado no primeiro trimestre, um comportamento com impacto negativo no saldo orçamental. Os problemas que já se vinham a verificar no ano passado – ausência de reformas estruturais, baixos níveis de investimento público, acumulação da dívida dos hospitais, entre outros – ir-se-ão agravar. No entanto, a prioridade atual é a de contenção da pandemia, o que implica a adoção de uma série de medidas de política extraordinárias, excecionais, temporárias, mas igualmente urgentes e necessárias.
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(*) Nota: dada a incerteza económica causada pela situação de pandemia de covid-19, a(s) próxima(s) análise(s) de execução orçamental terão, forçosamente, de adotar uma metodologia diferente. A metodologia atual estima o valor do saldo orçamental através de uma lógica incremental: a partir de estimativas da execução orçamental final, obtidas relacionando os dados disponíveis da execução orçamental com os padrões históricos das várias rubricas, calculam-se “desvios” parciais cujo somatório permite prever o desvio do saldo orçamental em relação à meta oficial.
No entanto, dada a incerteza quanto à duração e ao forte impacto que a pandemia irá representar na economia portuguesa, o comportamento histórico das diversas variáveis será certamente bastante díspar ao comportamento excecional que irá apresentar durante 2020, não sendo assim possível utilizar os padrões históricos para produzir estimativas credíveis.